A pandemia provocada pelo novo coronavírus é assunto em todo o mundo desde o início de janeiro de 2020, quando os primeiros casos começaram a brotar e se espalhar a partir da China.
Com o passar
das semanas e o aumento dramático no número de infectados, eventos
começaram a ser cancelados ou suspensos. Festivais e campeonatos
esportivos foram paralisados. Líderes mundiais como o americano Donald
Trump e a
alemã Angela Merkel admitiram recentemente que vivemos o maior desafio
global desde a Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945.
Quais as semelhanças entre a Gripe Espanhola e o Coronavírus?
Existem inúmeras semelhanças entre a pandemia de Gripe ocorrida no
início do século XX e a situação que estamos enfrentando atualmente,
apesar dos 100 anos que as separam. Mas para entendermos essas
similaridades, é preciso lembrar o que foi aquele surto.
A pandemia ocorrida em 1918 e 1919, conhecida como “Influenza
Hespanhola”, tem sido considerada uma das mais devastadoras e letais da
história. Esta enfermidade alastrou-se por todas as regiões do planeta e
deixou o maior número de infectados e mortos, se comparada com as
pandemias ocorridas até então. Ela teria vitimado 20 milhões de pessoas
em todo o mundo (mas alguns estudiosos falam em 50 milhões de mortos).
Em relação ao número de doentes, as dificuldades para o cálculo são
ainda maiores e os números, mais assustadores: supõe-se que teriam
adoecido pelo menos 600 milhões de pessoas. Existem várias teorias sobre a origem daquela pandemia. O certo é que
ela foi propagada, e talvez gerada, pela queda dos padrões sanitários e
pelos efeitos da escassez alimentar decorrentes da Primeira Guerra
Mundial (conflito bélico ocorrido entre 1914 e 1918). Como consequência
dessa situação calamitosa, a pandemia de gripe deixou, em alguns meses,
um número maior de mortos do que a própria guerra.
A denominação dada ao surto de 1918 vem do fato de que na Espanha não
era segredo os estragos feitos pela gripe. As notícias sobre a pandemia
eram publicadas livremente pelos jornais, o que dava a impressão de que
lá havia muito mais doentes do que em outras regiões. Outros países
preferiram suavizar o impacto causado pela enfermidade ou até mesmo
censurar a imprensa a respeito do assunto. A ideia de esconder os
estragos da epidemia foi defendida inclusive por instituições de
prestígio como a Royal Academy of Medicine de Londres.
“Espanhola” foi a denominação que chegou ao Brasil. Mas na verdade,
esta enfermidade acabou recebendo inúmeros nomes diferentes. Os países
afetados atribuíam uns aos outros a culpabilidade pela doença. Na
Rússia, a doença recebeu o nome de Febre Siberiana; na Sibéria, Febre
Chinesa; na França, Catarro Espanhol ou Peste da Senhora Espanhola; na
Espanha, foi batizada com o nome de Febre Russa…
Rapidamente, a doença expandiu-se pelo mundo. Provavelmente a rapidez
com que se alastrou, em 1918 e no ano seguinte, deveu-se aos
deslocamentos e contatos de grandes contingentes de tropas naquele
período, devido à guerra e a volta desses soldados para seus países de
origem. Mas também, pelo fato do vírus ser altamente transmissível.
Na época, não faltavam notícias dizendo que a doença havia sido uma
criação dos alemães. Muita gente acreditava que a moléstia era
engarrafada na Alemanha e depois distribuída por seus submarinos, que se
encarregavam de espalhar as ditas garrafas perto das costas dos países
inimigos. Apanhadas nas praias por gente inocente, espalhava-se assim
aquela terrível enfermidade.
A comunidade médica daquele período não conseguiu explicar como uma
moléstia branda e tão familiar pudesse estar matando tanto.
Desconhecia-se seu agente causador e a forma de contágio (as certezas a
respeito de como a gripe é transmitida só vieram à tona na década de
1930). Assim, os médicos puderam fazer pouco para salvar a vida dos
doentes. Tudo era feito na base da experimentação.
Um dos remédios utilizados na tentativa de evitar a doença ou curar
os doentes foi o quinino (medicamento utilizado originalmente para o
combate da malária). Houve uma corrida às farmácias em busca desta
substância, seu preço aumentou assustadoramente e o produto acabou se
esgotando (situação parecida está sendo vivida atualmente em relação à
busca por álcool gel e por máscaras, produtos que não são mais
encontrados no comércio).
Considerada até aquele momento uma doença comum e corriqueira, que
atacava especialmente idosos (chamada na época popularmente de
“limpa-velhos”), a pandemia de 1918 acabou alterando a idade da
população afetada. Morreram principalmente homens adultos, entre 20 e 40
anos (pessoas em idade de participarem do mundo do trabalho), o que
causou surpresa entre a classe médica. As vítimas provavelmente
precisavam sair de casa para trabalhar, e acabavam assim sendo
infectadas.
Quanto ao Covid-19, esse novo vírus também se
alastrou por todas as regiões do planeta e está deixando igualmente um
número muito grande de infectados e mortos. Assim como a Gripe
Espanhola, o Coronavírus está causando pânico, paralização da vida
cotidiana de boa parte do planeta, vem deixando transparecer antigos
problemas sociais e de saúde pública. Esse novo vírus é facilmente
transmissível, assim como a gripe, o que facilita sua rápida
propagação.
Apesar dos 100 anos que as separam, Gripe Espanhola e Coronavírus tem
também em comum a dificuldade dos poderes públicos em lidar com a
quantidade muito grande de óbitos, ao não conseguirem dar um destino
rápido aos corpos das pessoas mortas e ao terem que realizar
sepultamentos em covas coletivas, situações presentes há um século e que
já são observadas novamente nos países mais afetados pela pandemia.
Em relação à idade das pessoas que faleceram em função deste novo
surto pandêmico, é comum a fala de que o coronavírus é mais letal em
pessoas idosas ou que já possuem algum problema de saúde. Entretanto,
também existem inúmeros casos de pessoas jovens e saudáveis que vieram a
óbito por Covid-19. Tenta-se passar a imagem que ele também é um
“limpa-velhos” como a gripe era vista antigamente, mas os dados têm
mostrado que a situação real não é exatamente essa.
Se a Gripe de 1918 foi vista como sendo uma moléstia criada
artificialmente pelos alemães, o mesmo boato foi espalhado em relação ao
coronavírus. Há quem acredite que essa doença seria uma arma biológica,
criada em laboratório ou um vírus propositalmente manipulado. Inúmeros
boatos circularam na imprensa e nas redes sociais justificando tal
teoria. Nos Estados Unidos, há quem acredite que a China foi quem
produziu o vírus. Já os chineses acreditam que poderiam ter sido os
Estados Unidos que levaram o vírus para seu país. Entretanto, os
cientistas confirmaram tratar-se de um vírus que sofreu mutações
naturais, transmitido aos humanos provavelmente a partir de algum animal
na cidade de Wuhan, na China.
Ainda sobre a Gripe Espanhola cabe destacar que, naquela época, as
autoridades brasileiras ouviram com descaso as notícias vindas da
Europa. Acreditava-se que o oceano impediria a chegada da doença ao
Brasil, o que não aconteceu. A doença chegou ao país a bordo do navio
inglês “SS Demerara” (uma espécie de Correios britânicos), no dia 17 de
setembro de 1918. Esse navio chegou com a tripulação contaminada e
passou livremente pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro,
repleto de doentes.
De início, não foram tomadas providências enérgicas para combater a
epidemia, pois o Diretor Geral da Saúde Pública, Carlos Seidl, insistia
que a gripe tinha um caráter benigno (não era a “espanhola” que estava
atacando a Europa, e sim uma “gripezinha”). Seidl julgou que era
desnecessário tomar qualquer medida preventiva contra o mal, mesmo com a
quantidade de óbitos subindo a cada dia.
Conforme a situação foi piorando, os jornais e parte da população da
capital federal passaram a reivindicar o retorno das quarentenas e
isolamentos. Porém, Carlos Seidl insistia que quarentenas e isolamentos
não eram “nem possíveis, nem legais, nem científicos”. Ele pediu a
censura dos jornais, pois acreditava que estes acabavam por incutir
crescente pânico na sociedade e ameaçavam a preservação da ordem
pública. Segundo ele, o sensacionalismo histérico da imprensa estaria
espalhando o pânico de uma epidemia. Em muitas regiões do país, os
jornais foram censurados e proibidos de divulgar determinadas notícias a
respeito da doença (como, por exemplo, o número de infectados e de
mortos).
Conforme a situação foi piorando, Carlos Seidl acabou sendo demitido
do cargo e o sanitarista Carlos Chagas passou a chefiar o combate à
pandemia, mudando o discurso sobre a doença dado pelo governo federal e
tomando medidas mais enérgicas para o combate à enfermidade. Naquele
contexto, a vítima brasileira mais ilustre foi o presidente Rodrigues
Alves, que morreu em janeiro de 1919, antes de assumir o cargo para o
qual havia sido eleito meses antes.
Nos dias atuais, novamente se culpam os meios de comunicação por
espalharem a sensação de pânico entre a população, ao anunciarem o
grande número de vítimas em outros países. Novamente a imprensa é
acusada de ser causadora de uma histeria desnecessária. Além disso, aqui
no Brasil inúmeras pessoas passaram a negar a existência da pandemia.
Muitos afirmaram que era uma mentira da imprensa, que nada daquilo era
verdade.
No dia 24 de março, nosso atual presidente da República deu um
pronunciamento em rede nacional, no mesmo tom usado por Carlos Seidl há
102 anos atrás. Insistiu que o Coronavírus não passaria de uma
“gripezinha”, que alguns governadores estariam equivocados ao decretar
isolamento social, que o pânico gerado pela doença foi fruto do
sensacionalismo da imprensa. Além disso, o presidente pediu que as
pessoas retornassem ao trabalho, voltassem a normalidade assim como as
pessoas que viveram em 1918 tentaram fazer no início daquele surto
epidêmico.
Enfim, as duas pandemias possuem inúmeras semelhanças, mas vale
ressaltar também suas diferenças. Ao contrário da Gripe Espanhola, o
atual surto tem sua origem já estabelecida, suas formas de propagação
bem conhecidos e maneiras de evitar a contaminação. A situação está
gerando uma corrida contra o tempo na busca por um remédio para curar os
doentes e por uma vacina para tentar evitar novos casos. Não há
comparação entre o conhecimento científico de um século atrás e o atual.
Vale destacar aqui o importante papel que a Fundação Oswaldo Cruz vem
desempenhando neste contexto.
Esta instituição centenária já existia na época da epidemia de Gripe.
Ela foi criada em 1900, com o nome de Instituto Soroterápico Federal,
na distante Fazenda de Manguinhos, Rio de Janeiro. Seu intuito original
era fabricar soros e vacinas contra a peste bubônica. Em 1909 mudou seu
nome para Instituto Oswaldo Cruz, em homenagem àquele grande
sanitarista, diretor da instituição. Aos poucos, foi ampliando suas
atividades e seu papel dentro do cenário científico brasileiro.
A atual Fundação Oswaldo Cruz se tornou uma referência em termos de
pesquisa e orientação sobre a pandemia que estamos vivendo. Além disso,
há poucos dias, a Organização Mundial de Saúde oficializou a Fiocruz
como laboratório de referência para o combate ao novo coronavírus nas
Américas. O que significa que a instituição poderá receber amostras do
Covid-19 de outros países da região, para realizar o sequenciamento
genético, localizar mutações e seguir os estudos que possam levar ao
desenvolvimento de uma vacina ou medicamentos. É um título conferido a
poucos laboratórios no mundo.
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